Walt Whitman e Fernando Pessoa |
Saudação a Walt Whitman
Poesia de Álvaro de Campos - Livro de Versos . Fernando Pessoa. (Edição crítica. Introdução, transcrição, organização e notas de Teresa Rita Lopes.) Lisboa: Estampa, 1993. - 24a.
Portugal-Infinito, onze de Junho
de mil novecentos e quinze...
Hé-lá-á-á-á-á-á-á!
De aqui, de Portugal, todas as
épocas no meu cérebro,
Saúdo-te, Walt, saúdo-te, meu
irmão em Universo,
Ó sempre moderno e eterno, cantor
dos concretos absolutos,
Concubina fogosa do universo
disperso,
Grande pederasta roçando-te
contra a diversidade das coisas
Sexualizado pelas pedras, pelas
árvores, pelas pessoas, pelas profissões,
Cio das passagens, dos encontros
casuais, das meras observações,
Meu entusiasta pelo conteúdo de
tudo,
Meu grande herói entrando pela
Morte dentro aos pinotes,
E aos urros, e aos guinchos, e
aos berros saudando Deus!
Cantor da fraternidade feroz e
terna com tudo,
Grande democrata epidérmico,
contíguo a tudo em corpo e alma,
Carnaval de todas as acções,
bacanal de todos os propósitos
Irmão gémeo de todos os arrancos,
Jean-Jacques Rousseau do mundo
que havia de produzir máquinas,
Homero do insaisissable do
flutuante carnal,
Shakespeare da sensação que
começa a andar a vapor,
Milton-Shelley do horizonte da
Electricidade futura!
Incubo de todos os gestos,
Espasmo p’ra dentro de todos os
objectos de fora
Souteneur de todo o Universo,
Rameira de todos os sistemas
solares, paneleiro de Deus!
Eu, de monóculo e casaco
exageradamente cintado,
Não sou indigno de ti, bem o
sabes, Walt,
Não sou indigno de ti, basta
saudar-te para o não ser...
Eu tão contíguo à inércia, tão
facilmente cheio de tédio,
Sou dos teus, tu bem sabes, e
compreendo-te e amo-te,
E embora te não conhecesse,
nascido pelo ano em que morrias,
Sei que me amaste também, que me
conheceste, e estou contente.
Sei que me conheceste, que me
contemplaste e me explicaste,
Sei que é isso que eu sou, quer
em Brooklyn Ferry dez anos antes de eu nascer,
Quer pela rua do Ouro acima
pensando em tudo que não é a rua do Ouro,
E conforme tu sentiste tudo,
sinto tudo, e cá estamos de mãos dadas,
De mãos dadas, Walt, de mãos
dadas, dançando o universo na alma.
Quantas vezes eu beijo o teu
retrato.
Lá onde estás agora (não sei onde
é mas é Deus)
Sentes isto, sei que o sentes, e
os meus beijos são mais quentes (em gente)
E tu assim é que os queres, meu
velho, e agradeces de lá,
Sei-o bem, qualquer coisa mo diz,
um agrado no meu espírito,
Uma erecção abstracta e indirecta
no fundo da minha alma.
Nada do engageant em ti, mas
ciclópico e musculoso,
Mas perante o universo a tua
atitude era de mulher,
E cada erva, cada pedra, cada
homem era para ti o Universo.
Meu velho Walt, meu grande
Camarada, evoé!
Pertenço à tua orgia báquica de
sensações-em-liberdade,
Sou dos teus, desde a sensação
dos meus pés até à náusea em meus sonhos,
Sou dos teus, olha pra mim, de aí
desde Deus vês-me ao contrário:
De dentro para fora... Meu corpo
é o que adivinhas, vês a minha alma —
Essa vês tu propriamente e
através dos olhos dela o meu corpo —
Olha pra mim: tu sabes que eu,
Álvaro de Campos, engenheiro,
Poeta sensacionista,
Não sou teu discípulo, não sou
teu amigo, não sou teu cantor,
Tu sabes que eu sou Tu e estás
contente com isso!
Nunca posso ler os teus versos a
fio... Há ali sentir de mais...
Atravesso os teus versos como a
uma multidão aos encontrões a mim,
E cheira-me a suor, a óleos, a
actividade humana e mecânica
Nos teus versos, a certa altura
não sei se leio ou se vivo,
Não sei se o meu lugar real é no
mundo ou nos teus versos,
Não sei se estou aqui, de pé
sobre a terra natural,
Ou de cabeça p’ra baixo,
pendurado numa espécie de estabelecimento,
No tecto natural da tua
inspiração de tropel,
No centro do tecto da tua intensidade
inacessível.
Abram-me todas as portas!
Por força que hei-de passar!
Minha senha? Walt Whitman!
Mas não dou senha nenhuma...
Passo sem explicações...
Se for preciso meto dentro as
portas...
Sim — eu franzino e civilizado,
meto dentro as portas,
Porque neste momento não sou
franzino nem civilizado,
Sou EU, um universo pensante de
carne e osso, querendo passar,
E que há-de passar por força,
porque quando quero passar sou Deus!
Tirem esse lixo da minha frente!
Metam-me em gavetas essas
emoções!
Daqui p’ra fora, políticos,
literatos,
Comerciantes pacatos, polícia,
meretrizes, souteneurs,
Tudo isso é a letra que mata, não
o espírito que dá a vida.
O espírito que dá a vida neste
momento sou EU!
Que nenhum filho da puta se me
atravesse no caminho!
O meu caminho é pelo infinito
fora até chegar ao fim!
Se sou capaz de chegar ao fim ou
não, não é contigo, deixa-me ir...
É comigo, com Deus, com o
sentido-eu da palavra Infinito...
Prá frente!
Meto esporas!
Sinto as esporas, sou o próprio
cavalo em que monto,
Porque eu, por minha vontade de
me consubstanciar com Deus,
Posso ser tudo, ou posso ser
nada, ou qualquer coisa,
Conforme me der na gana...
Ninguém tem nada com isso...
Loucura furiosa! Vontade de
ganir, de saltar,
De urrar, zurrar, dar pulos,
pinotes, gritos com o corpo,
De me cramponner às rodas dos
veículos e meter por baixo,
De me meter adiante do giro do
chicote que vai bater,
De me (...)
De ser a cadela de todos os cães
e eles não bastam,
De ser o volante de todas as
máquinas e a velocidade tem limite,
De ser o esmagado, o deixado, o
deslocado, o acabado,
E tudo para te cantar, para te
saudar e (...)
Dança comigo, Walt, lá do outro
mundo esta fúria,
Salta comigo neste batuque que
esbarra com os astros,
Cai comigo sem forças no chão,
Esbarra comigo tonto nas paredes,
Parte-te e esfrangalha-te comigo
E (...)
Em tudo, por tudo, à roda de
tudo, sem tudo,
Raiva abstracta do corpo fazendo
maelstroms na alma...
Arre! Vamos lá prá frente!
Se o próprio Deus impede, vamos
lá prá frente... Não faz diferença...
Vamos lá prá frente
Vamos lá prá frente sem ser para
parte nenhuma...
Infinito! Universo! Meta sem
meta! Que importa?
Pum! pum! pum! pum! pum!
Agora, sim, partamos, vá lá prá
frente, pum!
Pum
Pum
Heia...heia...heia...heia...heia...
Desencadeio-me como uma trovoada
Em pulos da alma a ti,
Com bandas militares à frente
[...] a saudar-te...
Com um [...] contigo e uma fúria
de berros e saltos
Estardalhaço a gritar-te
E dou-te todos os vivas a mim e a
ti e a Deus
E o universo anda à roda de nós
como um carrocel com música dentro dos nossos crânios,
E tendo luzes essenciais na minha
epiderme anterior
Eu, louco de [...] sibilar ébrio
de máquinas,
Tu célebre, tu temerário, tu o
Walt — e o [...],
Tu a [sensualidade porto?]
Eu a sensualidade com [...]
Tu a inteligência (...)
11-6-1915
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