Ela estava muito doente, as suas costas desenhavam o seu minúsculo esqueleto. Ela perdera, gradualmente, a sua massa muscular e, além disso, uma das suas pernas de trás, devido à artrose, não dobrava, o que impossibilitava andar ou levantar-se sozinha.
Na altura, a veterinária que chamei para vê-la avisou-me logo: - "Vai ter de lavar a ferida, a cadela e a sua casa quase todos os dias. A casa era toda a hora, a cadela a cada dois dias e a ferida duas vezes por dia." Era um trabalhão!" A conversa com a veterinária, não se ficou por aí, já se prenunciava o fim. Dois meses disse-me ela, porque, supostamente, ela tinha uma cadela com a mesma patologia e acabou por morrer depois de dois meses. Falamos da eutanásia para pôr fim ao seu sofrimento, mas, apenas se houver algo que me levasse a isso. Não era preciso naquele momento. Devo confessar ter medo de testemunhar a morte dela, de chegar a casa e de a encontrar muito mal, mas, não me sentia bem em fazê-la ainda. Ela continuava a fazer uma vida quase normal, dava-lhe a medicação, estava vigorosa, continuava a passear pelo pátio, fazia o que sempre fizera. Estava bem. Em dezembro o Coronavírus estava muito longe de perturbar as nossas vidas.
Depois do natal, a minha chegada a casa a seguir a um dia de trabalho era acompanhada de uma grande ansiedade - como ela não saia à rua, o meu chão era a casa de banho dela e a minha tapeçaria da sala o seu espaço preferido, por ser, penso eu, um lugar um pouco escondido. Afinal ela tinha, sim, tinha, um pouco de vergonha. Eu, acabava por ter de tirar as mesas e as cadeiras que impediam a esfregona de passar. Sofria antecipadamente com a possibilidade de encontrar a casa num estado pouco apresentável. Na altura, pensei em fazer uma parceria com uma marca de lixívia pela quantidade de lixívia que usava. Era como se a minha cadela arrendara uma casa com cozinha, sala de jantar e a casa de banho incluída. Ela não pagava nada, mas era muito exigente. A enfermeira era eu e estava incluída nessa transação.
Ela era de porte pequeno, de uma raça indefinida, daquelas que gostamos por não se parecerem com nenhuma outra. Era feia, feia mesmo! Os seus pelos eram encaracolados na cabeça, o seu temperamento, que podia ser a única coisa que lhe pudesse conferir uma beleza interior, era terrível, mas, era o que lhe dava o seu charme e a sua resiliência.
Algumas vezes colocou-se em apuros - tentou "atacar" cães do dobro do tamanho para me mostrar o quanto ela era capaz de proteger-me. Quando eles se viravam contra ela, ela corria ter comigo para procurar reconforto e provocá-los, como se fosse uma criança agarrada às minhas pernas. O problema é que o medo que ela sentia passava a ser o meu. Uma partilha feita com muito amor. A questão que se colocava era: - "o que fazer para afugentar, gentilmente, um cão enorme com cara de mau?" A minha estratégia era dispersar a atenção do cão grande e dando um raspanete à Nicole antes de, tranquilamente, entrar em casa. Nada como fazer um método de diversão. Os problemas ficavam por aí. Mesmo assim, ela ostentava um ar de superioridade. Era uma pequena cadela cheia de força.
Ela não sabia nada da Covid 19, do confinamento, do estado de emergência, mas, agradecia o facto de eu estar em casa no período em que a doença se apoderava dela.
Estava confinada, estávamos confinados, e era para o bem de todos. Ainda é o que eu acredito - para o bem de todos e o meu. A situação com a minha cadela, que me era penosa, por ter uma carga de trabalhos enorme, também permitia-me estar ocupada, de concentrar-me num objetivo altruísta e de ter uma forma de comunicação saudável - chamava-a de todos os nomes quando ela sujava a cama dela. Era uma forma de afugentar a ansiedade, uma comunicação que eu chamaria de saudável. Sim, eram palavras que o vento levava, nenhuma delas era sentida, mas, faziam-me bem… Sempre que ela precisava de mim, ela chamava-me, e eu, ia logo acudi-la.
Ficamos em casa, eu tinha muito com que fazer e a vida é preciosa, a minha, a nossa, a das nossas famílias e da minha cadela. Eu estava lá para ela, mas, também para as pessoas que eu conhecia e que não conhecia. No início, as minhas noites sabiam o quanto eu tinha medo de ir lá fora. As compras tornavam-se um filme de aventura de Steven Spielberg - "A Busca da Arca Perdida". O que se seguia nem sempre era uma aventura - lavar tudo…
A pequena cama que ocupou a cozinha durante quatro meses era o espaço que ela assenhoreou. As panelas que estavam no armário atrás eram de difícil alcance, mas, não era a sua preocupação - a minha talvez - a sua principal preocupação era sair dela. A deterioração devido à doença acentuava os cuidados e a comunicação entre nós. Era suficientemente inteligência para dizer-me quando precisava ir à rua fazer as suas necessidades. Durante o confinamento eu estava em casa, e ela só fazia as suas necessidades, em casa, quando eu não estava presente. A perna que ela não dobrava não a permitia atingir o resultado que emanava do seu esforço, eu ia lá para aliviar a sua frustração.
Estes dois meses de preparação, em que a minha rotina era manter a casa habitável, transformaram-se em dias de coabitação durante o confinamento.
No início, os dias pareciam com dias e multiplicavam-se como dias. A cama confundia-se com o sofá, as séries e filmes desfilavam como se fosse água saciando o vazio em que a ociosidade se tornava insuportável. A minha sanidade mental remetia-me a doce convivência com a minha cadela doente. O espaço-tempo entrava num vórtice de recomeços e fins, sem fins. Ajudava-a para me ajudar.
Dias e dias a lavar a roupa devido à mama rebentada, comprimidos repetidos para afugentar a dor e acalmar as vozes de agonia. Dormir já não me pertencia, o relógio, as horas que definiam o meu tempo era as horas em que eu tratava dela.
Todas as manhãs eram de passeio matinal, ela ladrava e eu bem ou mal ia levantá-la da cama com um pano para não me sujar. Era o pano do dia, diariamente havia um, tal como a roupa, lençóis, mantas, tapetes que giravam por baixo dela. Nas noites em que ela não conseguia chamar-me, encontrava a cama toda suja. Ela gostava de banhos, mas os hábitos começavam a ser-lhe penosos. Tinha um mau feitio e era muito independente. Ladrar às pessoas era o seu momento preferido, agora, ladrava só para mim, e algumas vezes esquecia-se de o fazer. Eu é que lhe dava a independência para preservar o seu orgulho.
Perto de janeiro e fevereiro, eu ajudava a levantar-se, mas ela ainda andava. Era só dar-lhe o equilíbrio suficiente para se movimentar e se ela caísse eu agarrava-a até ela conseguir. Luna, a labrador, não percebia a incapacidade da amiga e derrubava-a, apenas, com a sua cauda. Foram momentos árduos. Após de dar-lhe atenção, ela deixava-me tratar da Nicole, mas, apenas depois de lhe dar atenção. Mesmo assim, ela ainda andava, fazia sozinha as suas necessidades e fugia quando olhava para a cama ao regressar em casa por medo de lá ficar de novo. Eu não impunha um tempo para ela passear, quando ela se cansava era ela que se colocava de novo na cama. Eu ajustava as pernas e o corpo para ela se sentir mais aconchegada.
Durante o confinamento ela piorava e piorava muito. Eu, entre momentos de trabalho feito a partir de casa e a revista de livros, músicas, filmes e séries, aceitava a imensa preocupação que ela agregava aos meus dias. O confinamento já era, por si só momentos de aflição. Tudo o que acompanhava as incertezas batiam à porta de todos os portugueses. Por sorte uma pequena luz se entreabria aquando da resposta dos nossos governantes. As minhas inquietações não se focavam apenas na doença da Nicole, a minha própria sobrevivência e a da minha filha entrava na equação. Como iria sustentar a minha filha, a mim, como iria pagar as minhas contas, tudo isso era um pouco de nervosismo disfarçado na tranquilidade com a qual eu tratava do meu pequeno ser. Atitudes foram tomadas para eu conseguir ter dinheiro para cobrir algumas das minhas obrigações. Comer era de certeza a primeira. As escolas foram fechadas e a minha filha ficou em casa e ainda bem, teimava para ela e para nós em casa. Paramos as visitas aos meus pais por serem da idade mais problemática. Fechávamo-nos em casa. Eu, já lá estava, mesmo assim.
Durante o confinamento ela piorava e piorava muito. A minha atenção desdobrava-se, a máquina de lavar a roupa trabalhava incessantemente. A cama dela e o chão eram desinfetados constantemente. O pouco que restava do seu corpo era lavado mais vezes, abraçava-a e pedia-lhe desculpa por ela estar nessa situação. Não sabia o que fazer. Ela, agora, só andava com a minha ajuda. Agarrava-a e agarrava no seu flanco para ela fazer cocó, chichi e andar porque eu sabia que lhe fazia bem. Curvava-me para facilitá-la.
As noites sobrepunham-se aos dias. Quem apagara a luz do sol?
As plataformas de produções, de filmes e séries eram e são muito aliciantes para os nossos dias. Já pagava uma delas, o que permitia a mim e à minha filha vermos o que queríamos em qualquer lugar. Eu sabia que numa outra plataforma de televisão "online" tinha documentários que eu queria muito ver. Que me suscitavam uma grande curiosidade! Era compatível com o meu serviço e percebi ser gratuita durante quinze dias, por isso, decidi arriscar. Vi o primeiro documentário e do nada decidi ver Chernobyl, uma série que teve muito boa receção e com um número muito elevado de boas críticas. Pensei cá para mim - vou ver o primeiro episódio para perceber se todas as críticas positivas eram fundadas. Não sou crítica, mas pensei poder ser interessante e os quinzes dias grátis soavam na minha cabeça.
Chernobyl foi um dos momentos mais marcantes do meu confinamento. Mais marcante como impacto derivado de uma minissérie de ficção que é baseada num facto que se passou no início da minha adolescência. Lembro-me perfeitamente da mística que criou na minha imaginação na altura. Falava-se em chuvas tóxicas que iriam dar a volta ao mundo. A penumbra encontrava um terreno fértil em adolescentes como eu.
Comecei a ver o primeiro episódio à uma da manhã e fiquei colada a ele durante os cinquenta e seis minutos da sua duração. Não houve contemplações, entramos logo no acidente e vivemos as mesmas dúvidas que os intervenientes. Era uma testemunha do que acontecera. Eu sabia a gravidade da situação, porque a vivia, e ao constatar a forma como foi gerido deu-me uma volta ao estômago. Revoltada passei a ver o outro episódio como se fosse vital para mim.
Vi o primeiro, seguiu-se o segundo, o terceiro e de repente eram quatro horas da manhã, mais coisa, menos coisa. Parei, provavelmente, para ir beber algo, ver se a Nicole estava bem e respirar um pouco. Estava numa indecisão nessa altura, ver o quarto episódio ou ir deitar-me? A excitação que eu sentia opunha-se ao meu mal-estar e a série acabava por ser uma revelação do que eu, e a maior parte das pessoas, não sabíamos. A progressão encaminhava a minha curiosidade. Uma certa inquietação queimava-me, toda a situação superava o meu sono. Decidi, então, entrar na quarta fase e era provável que acabaria na quinta fase desta série, na mesma noite em que a iniciei.
Tudo se centrava no núcleo da central nuclear e eu também. As imagens continuavam a dominar o meu incómodo, estava devastada, mas muito desperta.
Acabei por ver o último episódio entre a raiva e a indignação. Sentia-me dentro de uma bolha, num universo paralelo onde a televisão retinha-me, inebriada pelas imagens que me assombravam. Fervilhava um nervosismo palpitante, levantei-me do sofá, testemunho do meu desespero e fui para a rua, para o jardim.
Ainda era de noite, mas algo mudara. Enquanto despertava gradualmente da série, respirava o ar que me roubara, renascia da minha fúria deixada a poucos metros atrás e reparei que os pássaros cantavam numa cacofonia inaudível. Eram tantos, mas tantos, espalhados pelas árvores que cercam a minha casa. Respirava finalmente o ar puro do meu jardim que contrastava com o sufoco de um acidente nuclear e soprava de alívio por estar na minha casa, longe, espacial e temporalmente da tragédia. Acordava abraçada aos gritos dos passarinhos esfomeados à espera de comida. Acordava com a vida a superar a morte. Levantei os olhos, espantada por tanta beleza e ao longe uma luz quebrava o horizonte. O sol nascia da penumbre. Não me recordava do nascer do sol, tampouco da beleza porque trabalhava e acordava sempre com ele. A luminosidade penetrava a noite e os raios libertavam-se num dos mais bonitos cenários que eu vi durante o confinamento. A frescura do ar espalhava um sentido à minha vida. Os pássaros não paravam a sua azafama tarefa e eu redescobria que o dia despertava com tanta beleza. Chernobyl foi provavelmente a mais intensa série que eu vi durante a quarentena, mas, não superou a nascimento da natureza, do sol, da vida.
Nicole não queria saber das minhas descobertas, emoções, lembranças ou estado mental. Só queria atenção e ajuda. Os últimos dias foram difíceis, mas, houve um momento em que pensei que ela melhorava. Já punha a pata da frente no chão, já andava de novo quase sozinha, a minha ajuda era quase irrelevante, quando - o destino é terrível - ela teve uma convulsão. Pensei que a perdera - estava dura e não respondia. O meu pior pesadelo acontecia.
Fiquei ao lado dela, disse à minha filha para vir dar-lhe um beijo de despedida, algo que ela recusou fazer. Agarrei-a e coloquei-a na cama.
A minha resposta foi de espanto. Não sabia o que fazer, mas sabia que tinha de fazer alguma coisa. Esperei e percebi que ela respondia, que fora apenas um espasmo. Recuperou aos poucos. À noite, ela não quis beber água e comer, tentei dar-lhe com uma bisnaga, mas, ela não engolia. Não sabia quais eram as sequelas da convulsão. Foi neste preciso momento que tomei a decisão. Telefonei aos veterinários para proceder à eutanásia. Durante a quarentena e o estado de emergência, não era fácil gerir a situação. Consegui que viessem à minha casa. Nunca senti um peso tão grande nas minhas costas. Não sabia o que queria, mas, ia apenas protelar o inevitável e ela iria sofrer com isso.
A veterinária finalmente chegou. Olhou para a Nicole e verificou o mesmo que eu. Que já estava numa espiral e que o melhor para ela era docilmente fazê-la partir. Docilmente, digo porque é o que eu senti. Ela colocou o cateter, deixou-me dizer-lhe adeus e injetou um líquido que a adormeceu à minha frente. No meu olhar escondia-se um vazio. As emoções atropelavam-se. Dei-lhe uma última festa e ela deixou a cama dela vazia à porta do armário. A veterinária levou-a e eu fiquei atónica o resto do dia.
O meu confinamento foi muitas emoções espalhadas pelos dias de solidão em que todos ou quase vivemos. A Nicole era uma pequena cadela que teimou em viver depois dos catorze anos.
Ana Chaparreiro (2020)
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